segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

Informe MS





Desafios da Atenção Primária à Saúde

Data de publicação: 05/12/2019

Em entrevista, dr. Robert Janett, professor das Faculdades de Harvard (Cambridge, EUA) e Brown Alpert (Providence, EUA), fala sobre a APS no século XX

Coordenadora do cuidado, a Atenção Primária à Saúde (APS) é uma estratégia organizada e regionalizada para responder à maior parte das necessidades de saúde de uma população, integrando ações de promoção à saúde, prevenção e manejo de agravos em saúde, prestando atenção às pessoas. Baseada em tecnologias leves, é papel da APS promover saúde e cuidar dos problemas mais frequentes da sua população, evitando a sobrecarga dos outros pontos da Rede de Atenção à Saúde (RAS).
Para ser resolutiva e cumprir seu papel, é necessário que a comunicação entre os profissionais e entre os diferentes pontos da RAS flua adequadamente. É o que afirma o médico e professor das Faculdades de Harvard (Cambridge, EUA) e Brown Alpert (Providence, EUA), Robert Janett, que esteve no Rio Grande do Sul em outubro para o seminário Desafios da Atenção Primária à Saúde no século XXI, no Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Janett concedeu entrevista sobre o tema à revista Fonte, que pode ser conferida abaixo.
Fonte - Em sua palestra, o senhor comentou a respeito de uma APS mais robusta como caminho para sistemas de saúde fortalecidos. Como o senhor pode imaginar a APS robusta no Brasil?
Robert Janett - Estou falando de grupos de profissionais que trabalham juntos e com muito respeito; uma equipe multidisciplinar em que o médico é um membro importante, mas não é o centro do universo. Essa equipe tem informação alimentada com relatórios e informações disponíveis no momento do atendimento ao paciente, checklists para identificar as lacunas e fechar essas brechas de atendimento no momento em que ele está cara a cara na unidade e também com os registros dos pacientes. Identificar os que estão fora da atenção da unidade, pois somos responsáveis pela população inteira cadastrada e não apenas pelos pacientes que vêm até a nossa unidade. Essa é a chave do sucesso: motivar o paciente que não busca nosso serviço a buscar os serviços necessários.
Fonte - O senhor falou sobre pequenos pilotos que vão servir para essa mudança no modelo de APS. Pensando no Brasil, como seriam esses pilotos e como eles se disseminariam?
Janett - Sobre os pilotos, em Minas Gerais implementamos com muito sucesso esse modelo de APS em uma unidade com 10 médicos e 15  mil pessoas, a maioria idosa, com 60 anos ou mais. Depois de dois anos aprendendo nas aulas a implementar nas unidades processos, procedimentos, políticas, agora estão disseminando essas aulas para abrir novas unidades iguais e dar acolhimento para mais 150 mil pessoas. A ideia é mostrar o modelo local, entender as condições, experimentar os recursos humanos e procedimentos e depois replicar. Continuamente estudar, avaliar, monitorar para fazer coisas melhores cada vez mais. Definitivamente isso se aplica ao Sistema Único de Saúde, porque isso é uma coisa que aprendemos geralmente em sistemas de saúde de vários países: não começar um projeto enorme sem um piloto que podemos controlar e cujos  resultados podemos medir.
Fonte - O senhor comentou que um dos problemas da Atenção Primária hoje é a falta de comunicação entre os profissionais e entre os níveis de atenção…
Janett - Falta de comunicação em vários níveis: internamente, nas próprias unidades, e externamente, entre as unidades e outros atores fundamentais no sistema de saúde. As unidades de atenção primária devem integrar suas funções com outros especialistas, hospitais, agentes comunitários de saúde, porque, sem esse nível de integração, as necessidades dos pacientes crônicos, frágeis e de idosos não podem ser solucionadas. São esses os principais desafios do sistema de saúde: o aumento da taxa de crescimento da população idosa e daquela com doenças crônicas. Então as unidades de saúde orientadas para solucionar problemas agudos têm muitas falhas no acompanhamento de pacientes com essas necessidades. E comunicação é um dos componentes fundamentais para solucionar esses problemas. O sistema de saúde brasileiro é extremamente fragmentado, e a comunicação é o degrau número um para desfragmentar o sistema.
Fonte - Então seria muito importante que sistemas de informação fossem unificados  para utilização em toda a rede de atenção à saúde?
Janett - Isso é o sonho, a situação ideal. Em nossa rede em Cambridge (Massachusetts-EUA), realizamos esse sonho, mas com muito investimento de dinheiro, tempo e capital humano. É bom sonhar, mas não devemos esperar realizar o sonho para começar o trabalho, porque esse sonho pode levar décadas, e o sofrimento da população brasileira é hoje e não devemos esperar essas ferramentas perfeitas para começar o trabalho essencial de acompanhar esses pacientes doentes, com sofrimento e com custos extremamente altos. O trabalho de integração pode começar hoje, pode começar esta semana. Se o mundo ficar paralisado esperando um sonho de um sistema de informática perfeito, não vai fazer nada, e a saúde da população brasileira vai sofrer com isso. Devemos enfrentar a realidade e aceitar a realidade da situação.
Fonte - O senhor comentou que a centralidade da atenção à saúde está muito focada no médico e que isso pode ser um problema para um bom desenvolvimento da APS. Gostaria de saber como o senhor vê o papel do Agente Comunitário de Saúde nesse sentido.
Janett - É verdade que a cultura do sistema de saúde é extremamente focada no médico. O médico é o centro do universo, na imaginação dele e também na imaginação do sistema de saúde tradicional. Mas para fomentar reformas positivas nos sistemas, temos que quebrar essa ideia cultural e centralizar no paciente. Essa é a mensagem essencial. Nosso sistema de saúde tem que ficar centrado nas metas, valores, objetivos, alvos do próprio paciente, e por isso temos que adotar várias atitudes culturais. Primeiro: humildade, porque o ego é uma coisa extremamente tóxica e venenosa. Temos que encarar nossos pacientes com uma atitude de humildade e respeito. Respeito enorme pelos objetivos e alvos dos pacientes. Temos que  aplicar isso dentro das equipes de saúde, porque um sistema que está centrado no médico e que não tem humanidade e respeito também não tem humanidade e respeito pelos outros profissionais de saúde na equipe. E sabemos que o trabalho da APS é muito pesado e as necessidades das intervenções e da população são enormes. Não tem uma pessoa que possa satisfazer todas as necessidades de uma população de duas, três, quatro mil pessoas. Essas intervenções precisam ser compartilhadas em equipes para efetuar as terapias, serviços preventivos, rastreamentos e a organização necessária. Essa ideia demanda a necessidade do trabalho cooperativo entre médicos, enfermeiros, cirurgiões-dentistas, técnicos de enfermagem, agentes comunitários de saúde, recepcionistas, farmacêuticos, psicólogos e assistentes sociais, todos esses atores que têm papéis essenciais nas equipes multidisciplinares. Então, o primeiro degrau é adotar uma atitude de curiosidade, respeito e humildade para entender as contribuições essenciais desses outros profissionais no atendimento do paciente. Comunicação é um dos vários componentes dessa atitude de cooperação interdisciplinar, mas a comunicação também precisa desses outros componentes culturais para se tornar eficaz. Eu tenho que confessar que tenho um pouco de inveja disso, porque em Boston (EUA) temos poucos ACS. Em nosso sistema de saúde, a busca ativa depende mais de formas de comunicação eletrônicas, como ligações no celular, e-mail, coisas assim. Mas aqui no Brasil vocês têm um modelo que é uma joia. Essas pessoas da comunidade que cresceram na comunidade, que conhecem cada casa em sua área de responsabilidade e cada membro da família e seus problemas de saúde, sabem mais do ambiente biopsicossocial do que o próprio médico, porque estão na comunidade. Então essa ideia de colaborar com os ACSs para atender à complexidade das ameaças ao paciente é fundamental. Não só ameaças biomédicas, mas também ameaças sociais e psicológicas que determinam, em grande parte, os resultados das nossas intervenções em saúde. Por isso essa ideia do ACS como quem faz o inventário de todos os problemas do seu distrito e também desse conhecimento pessoal da comunidade é uma joia! Mas para ter vantagem nisso, os membros da equipe devem se comunicar, se reunir regularmente e compartilhar suas experiências, e o médico deve saber escutar a perspectiva desses outros profissionais.
Fonte - Quando falamos em focar no indivíduo, temos que focar não só no fator biológico, mas todo o entorno desse indivíduo…
Janett - Exatamente! Se você lembra da minha apresentação, eu mostrei um diagrama com três círculos: o biológico, o ecológico e o social. Eu apontei que trabalhamos na intersecção desses três círculos. Esse é o trabalho que fazemos na APS. Médicos que pensam que o único papel deles é o biomédico e o biológico perderam muitas oportunidades de curar pacientes ou de motivá-los. E não importa se receitam remédio ou se receitam injeção de insulina ou se mandam a pessoa para fisioterapia, se o paciente não tem motivação para efetuar as intervenções, pode não chegar aos resultados desejados. E com doenças crônicas, essas são coisas extremamente importantes.
Fonte - Como a gente mede o sucesso da APS?
Janett - Temos vários indicadores de sucesso da APS. O indicador principal é a satisfação do usuário: se a população-alvo está feliz com o serviço da unidade de saúde, não só com uma coisa, mas com a unidade como um todo. Por exemplo, se o médico é bom e o recepcionista é desagradável, a experiência do usuário é ruim. Todo mundo tem que colaborar para dar ao paciente uma boa experiência no serviço de saúde, esse é o indicador número um. Nós temos vários indicadores essenciais para uma APS boa. Primeiro é a resolutividade: que porção dos problemas que chegaram às portas da unidade são solucionados lá, no mesmo lugar. Frequentemente as equipes não têm horários adequados para atender os pacientes, só tem cinco minutos. Problema? Manda para o especialista. Problema? Manda para a radiologia. Isso é um médico “au-au”, ao ortopedista, ao dermatologista, ao cardiologista. Isso não é o papel da APS. Se vocês visitarem nossas unidades em Boston, vão ver um nível de resolutividade de 85 a 90% dos problemas. Por exemplo, tenho 311 pacientes diabéticos em minha carteira de pacientes. Somando talvez 5, 10 ou 15 deles têm um endocrinologista para me ajudar. Eu posso solucionar os problemas relacionados ao diabetes do resto da população. Outras classes de indicadores de sucesso da APS são indicadores de desempenho e resultados. Que porção dos hipertensos estão controlados? Que porção dos pacientes com diabetes tem controle de glicemia? Que porção das crianças recebeu um programa total das vacinas ou outros serviços preventivos? Esses são indicadores extremamente comuns em nível internacional e extremamente importantes para mostrar a efetividade dos sistemas de saúde populacional nessas unidades de saúde. Atualmente usamos frequentemente entre 30 e 60 indicadores em APS no dia a dia, mas esses são os mais comuns. Outro indicador de sucesso é a disponibilidade. Se você precisar consultar hoje, terá atendimento? Ou a única vaga é em duas, três semanas? Porque se o atendimento não é disponível, o paciente vai para outro lugar. Talvez vá para o pronto atendimento, talvez ao pronto-socorro ou diretamente para o especialista, e o resultado disso é mais fragmentação. São necessários atendimentos disponíveis no mesmo dia, como horas expandidas, cedo da manhã, à noite e fins de semana, horários em que os pacientes pobres estão disponíveis. Porque entre as 9h e 18h do dia, de segunda a sexta-feira, a população está no trabalho e não disponível. O pronto-socorro fica lotado com casos que não são emergências: é um efeito colateral da falta de acesso às unidades de APS, onde muito desses atendimentos devem ser feitos.
Fonte - O senhor falou sobre resolutividade. De que forma a telessaúde pode aumentar a resolutividade?
Janett - Verdade, mas eu tenho que comentar que o projeto de vocês é impressionante, é um modelo de telessaúde de categoria internacional. Eu vi telessaúde em vários países. Temos telessaúde em Boston também, de uma forma um pouco diferente, mas eu quero parabenizar vocês por essas unidades bacanas. Primeiro, do serviço de mais alta complexidade, dar mais evidências científicas aos médicos da APS, no momento certo quando estão juntamente com seus pacientes, isso ajuda na resolutividade e em intervenções eficazes. Outra coisa que quero parabenizar é a função de regulação do sistema. A forma de reservar os serviços de alta complexidade só quando forem  necessários, porque tem uma tendência muito fácil de mandar ao especialista, mandar para tomografia, mandar para ressonância magnética. Temos que reservar essas intervenções de alto custo, de alta complexidade, para os casos que merecem esse nível de intervenção. Senão vamos também engarrafar esses serviços, como engarrafamos as salas de espera do pronto-socorro. Reservar esses serviços para casos que verdadeiramente precisam desses níveis de diagnóstico e intervenção de alta complexidade.
*“Médico au-au” é uma gíria médica que se refere ao profissional que costuma encaminhar o paciente a outras especialidades.
Fonte: Revista Fonte